Eu a vejo pegando o ônibus, entrando apressada com uns fones de ouvido que tocam uma música que jamais vou saber qual é. Os cabelos morenos e lisos estão amarrados em um rabo-de-cavalo e chama a atenção o colorido leve de suas mechas californianas. As roupas são típicas de uma garota urbana, moletom, calças soltas e um tênis de marca, branco. Nas costas, uma mochila apoiada apenas no ombro esquerdo. Não sei como pode esse estilo despertar assim minha atenção enquanto ela se desloca pelo ônibus praticamente vazio. Desejei que ela sentasse ao meu lado, para analisar suas faces mais minuciosamente. Obra do destino...
Ela escorrega entre um passageiro e outro e mira na minha direção. Seu olhar é despreocupado, ignora tudo, parece muito ocupada com algum compromisso ou completamente absorvida pela música que toca em seu player. Ao notar uma poltrona vazia ao meu lado, ela se aproxima. Seu rosto é arredondado, os olhos são amendoados e o cabelo desalinhado na frente, escorrendo pela testa, é encantador. A garota urbana pede licença para acomodar-se. Nos seus pulsos, consigo ver algumas fitinhas coloridas, uma delas em referência ao reggae, nas cores da bandeira jamaicana. Não há nenhum anel nos dedos, ela também não usa brincos.
Enquanto o veículo cambaleia pelo caminho, ela escora a mão para evitar os solavancos. As unhas são delicadas, curtinhas e delineadas por um esmalte rosa, de um tom quase incolor. Em uma das paradas no caminho, ela puxa a mochila para sua frente e, quando o ônibus arranca, acaba batendo com o objeto em meu ombro esquerdo. Deveria ser um sinal para que eu parasse de decifrar suas feições e atitudes, só que seu olhar meigo e educado, me perguntando se estava tudo bem e pedindo desculpas foi intrigante. Aquela garota urbana dominava meus pensamentos e faltavam poucas quadras para que eu chegasse ao meu destino. Talvez tivesse pouco tempo para falar alguma coisa interessante e, quem sabe, conseguir o número de seu telefone para vê-la novamente.
Respondi apenas "não foi nada", resposta de praxe. Ela voltou a sumir em seus pensamentos que agora eu percebia que eram nas músicas que ouvia. Outro detalhe chamou minha atenção. Seus lábios rosados moviam-se lentamente, dava para perceber que ela cantarolava algo, provavelmente acompanhava a canção que estava tocando. Em mais um movimento brusco do ônibus, a mochila que ela levava no colo acabou puxando os fones, arrancando-os de seus ouvidos. "Redemption song ficou linda na tua voz com a acústica dentro do ônibus", falei. Ela sorriu e agradeceu. Aquela demonstração de simpatia valeu o dia. A garota urbana desceu na parada seguinte e eu segui seus passos com o olhar enquanto o veículo arrancava. Vendo que eu a mirava, ela abanou e retornou para sua meditação com a música. Em outros dias, eu e a garota urbana conversamos dentro do ônibus. Ainda não dissemos nossos nomes um para o outro, falamos apenas de músicas. Nos deslocamos para nossos trabalhos usando os fones de ouvido dela e comentando sobre as canções e hoje eu parei para pensar no quanto simples e maravilhosa uma amizade pode se tornar.


