Foi em um final de semana que virei estatística. Alguém tinha bebido, e dei o azar de cruzar o caminho dele. Eu tinha muito a fazer ainda, mas morri naquela curva. Morri sem culpa, porque tentei desviar, lutaram para me salvar. Fui mantido vivo em outras pessoas, partes de mim continuam por aí, literalmente. Continuei vivo, enfim.
Deixei marcas na pista, virei o assunto do dia. Colocaram minha foto no jornal e contaram parte da minha história. Não confirmaram, mas eu havia bebido. Bebi porque responsabilidade não rimava com minha personalidade, porque aquele dia queria me divertir. Mas na hora de voltar, não sei o que rolou. Deixei saudade entre pessoas que amava, tem gente que não aceita o que fiz, mas fui embora sozinho, ao menos isso. É o que me conforta.
Meus filhos foram acordados de madrugada com a notícia. Trabalhei a semana toda para vê-los, corri demais, fiquei dois dias sem dormir. E justo onde não podia, peguei no sono. Foi só por um segundo, agora não posso voltar. E machuca saber o quanto eles irão chorar. Minha presença, ainda que rara, era comemorada. Agora, sou só uma lembrança, uma tristeza. Morri na estrada para cumprir o horário, para voltar para casa e abraçar meus filhos, morri sem conseguir o carinho deles pela última vez.
Sempre gostei de correr, o pessoal todo me conhecia por isso. Turbinado, rebaixado, voava no asfalto. Naquele feriado de Páscoa, meia cidade estava me vendo quando parti. Minha última corrida, nem acredito que perdi. Mas não foi culpa minha, o pneu estourou, dizem que voei sobre o guard rail, não sei, meu mundo acabou. Os policiais me encontraram ainda vivo, prenderam alguns dos meus amigos. Não foi culpa deles, entrei naquele carro sozinho. Mas queria voltar, fazer diferente, tentar de novo. Se fosse um sonho, eu acordava. O sono é profundo demais, na beira do caixão, minha mãe chorava.
Nunca tive o cuidado de andar na faixa, diziam que era mais seguro. Mas não imaginei que me pegariam na calçada. Minha garota estava comigo, acabou traumatizada. Demorou anos para superar a dor da minha ida, eu ainda não sei como não senti nada. Foi tudo rápido demais, não tive como me defender. Eu era só um cara cheio de planos voltando da faculdade. Meus cadernos ficaram pelo chão, as lições que aprendi na classe de direito. Quem me matou não tinha habilitação, estava suspensa. A Justiça não achou nada demais. Viraram minha página, me tornei uma vítima comum de um mundo trágico.
Somos uma tragédia, vítimas de nós mesmos. De carros velozes demais, de irresponsáveis que deveriam estar presos. Somos o passado toda semana, morremos a cada feriado. Só o que fica de nós é história, contada por quem esteve do nosso lado. Sem contar nas feridas, nas pernas quebradas, nos danos irreversíveis, as cadeiras de rodas. Todos os dias, morremos, cada de um de nós, nas estradas. Não estamos fazendo nada para interromper isso, mesmo quando perdemos um conhecido, um amigo. Outro dia, nosso vizinho, daqui a pouco um irmão, um pai, um filho. Uma excursão sem volta. Campanhas publicitárias focadas em dinheiro não são solução, não vão trazer nossas vidas de volta nem evitar que outras se vão. Ou tiramos o pé do acelerador agora, ou não haverá amanhã.
Pelo fim da violência do trânsito, que dilacera milhares de famílias brasileiras todos os anos.

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